quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Pentelhos do Rei - A arte da argumentação

Aquela poderia ser somente apenas mais uma sessão de julgamento como todas as outras, em que os advogados fingem ser advogados, os juízes fingem ser juízes e o onde todo mundo finge entender o que se passa. Estava eu aguardando para assistir a mais uma sessão visando a cumprir o meu dever de estagiário de meramente anotar o resultado de julgamento dos processos sob o patrocínio do escritório que estavam em pauta naquela sessão, quando então escutei o Presidente da sessão chamar um processo da pauta e anunciar que haveria sustenção oral do advogado recorrente, ou seja, do advogado que "entrou" com o recurso.

Levantou-se do público o advogado que iria falar. Tive pena da sua imagem: era um homem muito velho, aparentando mais de 80 anos, usava bengala pois mal podia se movimentar. Naquele momento um funcionário do Tribunal foi então ajudar o velho advogado a subir ao púlpito em tormentuosos 10 minutos. De lá o funcionário não sairia até terminar a sustentação oral daquele velho Doutor já que era quase iminente que tal homem sucumbisse.

O velho advogado pendurou a bengala na parte na lateral do móvel e pôs as mãos no parte da frente do púlpito e começou a fitar os julgadores com o olhar carinhoso daquele servo preferido. Lá ele iria escutar o relatório e voto do relator do acórdão, isto é, da decisão judicial composta pelos votos de três julgadores que analisa o recurso apresentado pela parte, reformando ou não a decisão judicial de primeira instância.

Pois bem. Perfeitamente acomodados todos os presentes no julgamento, o relator do processo pôs-se a ler o relatório do processo, descrevendo pormenorizadamente tudo o que foi coletado no processo: provas documentais e testemunhais, teses de defesa, audiências e etc. Findo o relatório, o relator então pôs-se a ler o seu voto demonstrando sua divergência com a argumentação utilizada pelo velho advogado, citando para tanto diversos precedentes em contrário, assim como discorrendo sobre opinião de outros juristas também contrários à argumentação. Por fim, numa atitude insensível e degrandante, ainda disse que ele não iria reescrever seu voto, não importava o que fosse dito na sustenção oral. Feito isso, deu a palavra ao idoso do púlpito.

A atenção de todos agora estava voltada para aquele pequeno móvel situado de frente à menor parte da enorme mesa retangular em que sentavam os julgadores. A altura do púlpito é tradicionalmente menor que a do tablado dos julgadores, isso para demonstrar humildade e respeito. Coisas que certamente aquele advogado sempre prezou.

Logo se viu uma nova postura. Deixando de lado o microfone, o velho advogado encheu o peito pôs-se a cumprimentar todos os presentes com os tradicionais "íssimos": Digníssimos, Ilustríssimos e Meretíssimos. Após, pôs-se a discorrer sobre os fatos atestados no processo; sobre a colheita de provas; o belíssimo trabalho do perito e dos assistentes técnicos; e as teses levantadas no processo. Discorreu sobre o conceito filosófico de verdade, minuciando cada autor e a evolução do conceito. Naquele momento pairava na sessão a impressão de que aquele discurso era desconexo, em nada aplicável ao caso em julgamento.

Foi então que o Presidente da sessão pressionou o botão que sinaliza o fim do tempo previsto para a sustenção oral daquele advogado e tentou prosseguir no julgamento pedindo o voto do revisor - o segundo julgador do acórdão.

Vendo a movimentação dos julgadores, o velho advogado pediu a palavra novamente e disse calmamente:

- Digníssimo Presidente, confesso que a idade me maculou a audição e é só com muito esforço posso escutar o que se passa nesse ambiente. Tenho a impressão de que ouvi um alarme noticiando o fim da minha sustenção oral, contudo, "data maxima venia", custo a acreditar que o Digníssimo Presidente praticou tal ato, pois o tempo dedicado à sustenção oral dos patronos das partes é de 20 minutos nos termos do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal. De acordo com o meu relógio, que apesar de velho e pouco enferrujado, não falha, passaram-se tão somente 9 minutos, restando, portanto, mais 11 minutos para esta sustentação oral.

Instaurou-se alto burburinho naquela sessão. O Presidente pediu um momento para consultar Regimento Interno do Tribunal e, atestando que o tempo para a sustentação era de 20 minutos, determinou que o orador prosseguisse na sustenção oral.

Com a mesma paciência e gentileza, prosseguiu na sua sustentação, defendendo a tese minoritária, ou seja, a de menor adesão pelos precedentes daquele Tribunal e demais julgados. Pontuou, como se tivesse um quadro negro naquele momento, os principais pontos da argumentação, demonstrando então a clareza e completude de toda a sua sustentação oral feita naquele recinto. Por fim, novamente cumprimentou os presentes e finalizou seu discurso depositando sua confiança na sensibilidade e competência daquele Tribunal, que decidiria, então, com Justiça.

Enquanto o velho advogado se dirigia novamente ao assento reservado ao público, a sessão ficou em silêncio, todos chocados com o que haviam presenciado. Cada um presente naquela sessão naquele momento juntada como cacos de vidro as concepções adquiridas durante o tempo de faculdade acerca da matéria tentando contrapor a argumentação daquele velho orador. Era inútil. Era impossível. Ele havia conquistado a platéia e o resultado já era previsível.

Bestificado, o relator do processo, que outrora havia declarado que não mudaria seu voto, pediu a palavra e declarou com a voz firme que havia não só escutado uma sustentação oral, como também presenciou uma lição de vida. Reconheceu que por vezes a função de julgador causa a falsa impressão de que uns são melhores que outros, criando preconceitos e minando o ideal da justiça. Diante disso, considerando a argumentação do advogado, declarou que iria reescrever seu voto, agora já convencido de que a justiça estava com aquele velho advogado.

Foi então que novamente se viu o sorriso no rosto daquele velho advogado, com aquele olhar carinhoso daquele servo preferido.

2 comentários:

  1. Eu queria conhecer a argumentação do velhinho. Aprender as manhas...

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  2. Ah caro amigo! Nessa matéria, só o Sr. tempo é capaz de ensinar-lhe. Tudo isso para dizer que muito mais importante do que "o que" você diz é "como" você diz.

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